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CIDADE
Terça - 21 de Agosto de 2012 às 08:15
Por: Gabriela Gasparin - G1 SP

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Foto: Fabio Tito/G1

O programa do Microempreendedor Individual (MEI) foi criado pelo governo federal para formalizar trabalhadores autônomos e colocá-los na legalidade. O G1 constatou que em muitas oficinas de costura em São Paulo, no entanto, imigrantes bolivianos vêm usando o registro de forma irregular, aproveitando-se de uma brecha no sistema de cadastro, realizado pela internet.

Estrangeiros sem residência permanente conseguem o documento porque, no processo de inscrição, o formulário pede como identificação os números do Cadastro de Pessoa Física (CPF), que pode ser obtido por qualquer pessoa, e do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), que estrangeiros possuem mesmo sem ter residência fixa no país. Depois, é necessário informar o número do recibo da declaração do Imposto de Renda ou, na ausência desse, do título de eleitor. Mas qualquer pessoa pode fazer uma declaração de isento e obter o número de recibo do IR.

A inscrição no MEI permite que os imigrantes consigam um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Com isso, eles podem emitir notas fiscais a pedido de quem os contrata e garantir serviço mesmo sem se enquadrarem no perfil de empreendedores individuais. Alguns nem sequer têm visto de residência permanente no país, uma exigência legal do MEI. Outros fazem o registro exatamente para comprovar renda e conseguir esse visto.

Para se enquadrar no MEI, a empresa precisa ter faturamento de até R$ 60 mil ao ano e registro de apenas um funcionário. Muitas oficinas de costura registradas de maneira irregular, no entanto, faturam mais que o limite e têm normalmente mais de cinco trabalhadores. A brecha no sistema colabora para que persistam irregularidades trabalhistas comuns nesses locais, muitos dos quais são alvos constantes de denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão.

O secretário-executivo do Comitê Gestor do Simples Nacional da Receita Federal, Silas Santiago, condena a inscrição irregular dos bolivianos, que fraudam o sistema ao não declarar que não possuem residência fixa no Brasil. “O sistema não tem como estar ligado com a Polícia Federal. Se a pessoa está mentindo ali, ela está cometendo uma fraude. A Receita não tem o cadastro ligado com a Polícia Federal para saber se aquele valor está certo ou não.”

“Ele tem que informar o número de Registro Nacional de Estrangeiro, fornecido pela Polícia Federal. Se ele está mentindo ao sistema, se ele está mentindo na declaração dele ou mentindo ao sistema, ele vai conseguir o CNPJ”, afirma. “Nós só cuidamos da inscrição. Se a pessoa mente na inscrição, ela consegue não só o MEI. Se existir mentira, as pessoas conseguem falsificar documentos e fazer CNPJ”, diz.

O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), responsável pelo MEI, diz que já constatou o problema, e que uma equipe foi deslocada com urgência para avaliar a situação dos cadastrados, investigar como o registro acontece e sua magnitude. Posteriormente, irá definir os procedimentos a serem adotados.

No caso dos bolivianos sem residência permanente, o MEI é usado para conseguir a chamada Declaração Comprobatória de Percepção de Rendimentos (Decore). O documento, que comprova a renda do imigrante, é uma exigência que os estrangeiros, pelo Acordo de Residência do Mercosul, precisam apresentar para permanecer no Brasil após um período de dois anos de estadia provisória.

“Dos 100% que querem abrir o MEI, metade quer abrir não porque quer abrir uma empresa, mas por cumprir requisito para ter um documento”, diz Luis Vasquez, presidente da Associação de Empreendedores Bolivianos da Rua Coimbra, que fica no Brás, na capital paulista.

Liderança em registros
Com 3,9 mil registros no MEI até o começo de agosto, os bolivianos são a maioria entre os 14 mil estrangeiros incluídos no programa no país, de acordo com dados do Portal do Empreendedor, página oficial do governo. Quase todos esses bolivianos estão no estado de São Paulo: são 3.728 empreendedores individuais, sendo 3.258 só na capital.

Alvaro (nome fictício), de 40 anos, é um deles. Ele está no Brasil há oito anos e fez o cadastro no MEI há um – sem ter o RNE de residência permanente. Recusado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Alvaro diz ter buscado ajuda "de outras formas". O boliviano conta que pagou cerca de R$ 200 para um conhecido fazer o registro (que é gratuito) para ele.

“Ajudou um pouco porque queria fazer uma coisa melhor [na oficina], uma coisa grande, para pegar mais serviço. Os donos das firmas pedem CNPJ, como eu não tinha, trabalhava com amigos, mas tinha que emprestar o CNPJ de um amigo para pedir serviço”, relata.

Alvaro possui 12 máquinas de costura e faz a finalização do serviço em roupas sociais, como blazers e calças. Garante que, atualmente, tem faturado cerca de R$ 4 mil ao mês, mas admite que, em tempos de muito serviço, com todas as máquinas ocupadas, é possível faturar de R$ 10 mil a R$ 12 mil ao mês. Hoje em dia, ele diz que trabalham na oficina apenas quatro pessoas. Como é permitido registrar apenas um funcionário, optou pelo registro do irmão.

O boliviano Jorge (nome fictício), de 33 anos, também recorreu ao MEI mesmo sem ter RNE permanente para "regularizar" a oficina onde trabalha com parentes. Ao todo, são seis pessoas. Juntos, costuram cerca de 2.000 mil peças, geralmente malhas, por mês. "Sem CNPJ a gente não pode pegar serviço (...). A gente está esperando que saia o RNE permanente para fazer microempresa. Não dá para trabalhar assim, a gente quer trabalhar direito. Meu documento [provisório] vai vencer no ano que vem", diz.

Condições difíceis
As condições de trabalho das oficinas de costura de bolivianos são duras. Jorge diz que, em época de muito serviço, trabalham "muitas" horas por dia. Diz receber entre R$ 1,60 e R$ 2,50 por peça costurada.

Alvaro, por exemplo, relata que, em 2011, recebeu três visitas da fiscalização. Em uma ocasião, diz que chegou a ter a oficina lacrada por três meses – era uma entre várias envolvidas em um caso de denúncia de trabalho análogo à escravidão que teve repercussão à época.

Uma das práticas comuns nessas oficinas é reduzir o valor emitido na nota fiscal, muitas vezes a pedido das empresas que pedem o serviço dos bolivianos. "O que eles falam nós fazemos, né", conta Jorge. Se os pedidos saem com defeito, são sujeitos a multas, que podem ser de 50% do preço ou o valor total de venda de cada peça, revela Alvaro.

De acordo com Vasquez, da Associação de Empreendedores, um estudo da entidade constatou que apenas 5% do custo das peças vão para a oficina.

Sem nota
A pedido da empresa que contrata seus serviços, a boliviana Ivone (nome fictício) também se registrou como MEI. Mas não sabia que tinha de adquirir um sistema para a emissão da nota fiscal eletrônica e teve seu serviço negado pela empresa que a contrata.

Somente quando procurou um contador foi que Ivone descobriu que não se enquadra como microempreendedora individual – tem seis máquinas e três pessoas que costuram para ela, todas sem registro. O faturamento ultrapassa o exigido. "Eu achei que com isso [o MEI], estava resolvido meu problema, mas não está".

Agora, quer fechar a empresa. O problema é que é fácil conseguir o MEI, mas complicado baixar as portas, explica a contadora Maria Eugenia Crespo, que é boliviana e vive no Brasil há mais de uma década.

“O MEI para nós não está adiantando. Nenhuma das empresas [bolivianas que faz o registro] é de duas máquinas de costura só. A menor tem pelo menos cinco funcionários. É um engano”, avalia Maria Eugenia.

Ministério Público
A informação de que os costureiros bolivianos estão abrindo o MEI já chegou ao Ministério Público do Trabalho em São Paulo, mas ainda não há nenhum inquérito aberto a respeito.

"A gente ainda não fez nenhuma diligência que apurou o flagrante dessa situação. A gente vai fazer um plano de atuação para identificar algumas dessas empresas, elas vão entrar de forma prioritária no cronograma de atuação", afirma ao G1 o procurador Luiz Fabre.

Segundo ele, o procedimento a ser adotado provavelmente será o mesmo usado com relação à "pejotização", prática bastante comum de contratar pessoas como se fossem empresas, pedindo que elas emitam nota fiscal. De acordo com Fabre, em cadeias de produção muito grandes, há uma integração entre o que está na ponta e o fornecedor. "Não se pode fechar os olhos para o que acontece na cadeia."

Por esse motivo, Fabre diz que, para o Ministério Público, a situação se enquadrada em fraude com relação ao vínculo empregatício, já que são as maiores empresas que pedem aos costureiros que tenham um CNPJ. “Existe a possibilidade do vínculo empregatício por meio da subordinação integrativa”, afirma, explicando que essa subordinação acontece quando “um dos agentes segue as ordens do outro, em uma situação que em tudo se assemelha a uma subordinação de emprego.”

Esclarecimentos
A Receita Federal informou ao G1 que, para formalizar-se como MEI, o sistema exige que a pessoa, se estrangeira com visto permanente, informe o número do RNE. Explicou, contudo, que não tem como verificar se o RNE fornecido é ou não de residência permanente, tendo em vista que a base de dados do Fisco não cruza com a da Polícia Federal.

"Com o objetivo de aumentar a segurança, o sistema foi alterado recentemente quanto aos requisitos de entrada no aplicativo de inscrição. Agora o sistema exige do MEI, além do número do CPF e data de nascimento, o número do recibo de entrega da última declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física. Se o interessado em se formalizar não tiver entregado a declaração, deve informar o número do Título de Eleitor." O Fisco informou ainda que o simples fato da pessoa estrangeira adquirir CNPJ não regulariza a sua situação no Brasil.

O Ministério do Trabalho informou que fiscaliza com frequência as oficinas de costura em São Paulo e toma as medidas cabíveis quando encontra irregularidades.

A Polícia Federal disse que apenas emite os registros de residência permanente e orientou que a reportagem procurasse o Ministério da Justiça. A Justiça reforçou apenas que "encontra-se em vigor desde novembro de 2009 o Acordo sobre Residência para os nacionais dos estados parte do Mercosul e Associados (Decreto nº 6.975/2009), por meio do qual nacionais bolivianos, independentemente do status migratório, podem requerer a residência no Brasil". Pelo acordo, os bolivianos têm residência provisória por dois anos e, após esse período, precisam comprovar renda para conseguir o visto permanente.

A advogada Ruth Camacho, orientadora jurídica da Pastoral do Migrante em São Paulo, estima que cerca de 70% dos bolivianos na região trabalham na informalidade. "Para eles, comprovar a renda é muito difícil (...). São pessoas oriundas de zonas mais rurais da Bolívia e não têm noção que têm que formalizar a situação de onde recebem dinheiro."

Luis Vasquez, presidente da Associação de Empreendedores Bolivianos, diz que, após abrir o MEI, muitos esquecem que precisam pagar imposto mensalmente, ficando com dívidas com a Receita Federal. “Muitos não sabem nem que tem o boleto”. O custo para a formalização é o pagamento fixo mensal de R$ 32,10 (comércio ou indústria) ou R$ 36,10 (prestação de serviços), que será destinado ao INSS e ao ICMS ou ao ISS.

Para o presidente do Sebrae, Luiz Barretto, apesar das irregularidades, o número de estrangeiros bolivianos ainda é muito pequeno com relação ao total de MEIs no país. "Três mil, num universo de 2,5 milhões, é quase nada”, diz.

De acordo com o Ministério da Justiça, em 2011, o Brasil tinha 16.673 bolivianos com registro temporário no país e outros 48.862 com visto permanente.


 





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