GILMAR MENDES
Em defesa do habeas corpus
Os juízes têm uma relação paradoxal com a liberdade.
De um lado, são defensores da ordem: apenas a ordem escrita e fundamentada de um juiz legitima que alguém seja mantido preso (artigo 5º, LXI, da Constituição).
De outro, eles são defensores da liberdade: sempre que a lei admitir a liberdade, a obrigação do juiz é assegurá-la (art. 5º, LXVI, da Constituição).
O Brasil é um país violento e corrupto. A sociedade clama por reação, ainda que simbólica, especialmente em face de crimes de sangue e corrupção.
Não é surpresa que as decisões que privilegiam a ordem, determinando o encarceramento, sejam bem vistas pelo público.
Por outro lado, decisões que afirmam a liberdade são impopulares. O juiz também é um membro da sociedade e, como tal, compartilha o sentimento coletivo.
Ainda assim, ao determinar a prisão, deve seguir a lei à risca, evitando encarceramento além do necessário.
Dentre outras maneiras, o sistema jurídico manifesta a preferência pela liberdade por meio da ação de habeas corpus (HC), uma via processual prevista constitucionalmente, destinada a assegurar a liberdade, podendo ser proposta por qualquer um do povo para fazer cessar uma prisão indevida.
O habeas corpus é igualmente valorado pelos tribunais, seja ele escrito pelo advogado consagrado, em papel especial timbrado, seja pelo próprio preso —ou seus parentes— em folhas de caderno.
O HC acaba sendo o meio para coibir interpretações equivocadas e mesmo abusos na prisão. Essa característica de defesa da liberdade o torna bastante impopular entre aqueles que pregam a punição desmedida, gerando reações destinadas a limitar sua utilização.
Um dos projetos de lei elaborados pelo Ministério Público Federal na campanha intitulada "Dez Medidas contra a Corrupção" buscava justamente reduzir o poder dos tribunais para conceder habeas corpus. Felizmente, restou rejeitado pela Câmara dos Deputados.
Em outra frente, discute-se a limitação do poder do Supremo Tribunal Federal de conhecer de ações de habeas corpus, por meio de uma nova interpretação da Constituição.
A inovação seria limitar os pedidos da defesa a apenas duas instâncias. Assim, contra decisões de primeira instância caberia habeas corpus ao Tribunal de Justiça e recurso ordinário ao Superior Tribunal de Justiça. O Supremo não poderia ser acionado.
Defendo que a ação de habeas corpus não pode ser limitada. O Brasil tem a terceira população carcerária do mundo, com 726.000 pessoas presas —quase o dobro do número de vagas. Cerca de 40% dos encarcerados não foram julgados em definitivo.
Não vamos resolver a impunidade ou a morosidade judicial antecipando penas, muitas vezes injustamente, mas apenas criar novos problemas.
Os presídios servem como agências do crime organizado, verdadeiros escritórios de logística e de recursos humanos das organizações.
Nesse contexto, defender o habeas corpus é defender a liberdade individual, é defender a expectativa de civilidade para todos e cada um, mas também é defender a sociedade contra a propagação desenfreada do crime.
A violência e a corrupção não podem ser combatidas fora da lei. A persecução dos criminosos sem o Estado de Direito apenas gera novos crimes.
GILMAR MENDES, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
* Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo