AUREMÁCIO CARVALHO
O limite das paralisações
Estamos assistindo, de norte a sul do país, a greve dos motoristas de caminhão, que está parando o país já há quatro dias, com consequências graves: limitação ou proibição do direito de ir e vir; produtores tendo prejuízos por não poderem transportar seus produtos até os mercados; animais com risco de morrer de fome pela falta de rações; aviões em vias de paralisar seus voos; preços explodindo nos postos de gasolina e mercados, e também de verduras e alimentos, etc.
O direito de greve é ilimitado? A ponto de desorganizar a nação? Toda a coletividade deve ficar refém dos grevistas? Não há um limite legal? Ora, como sabemos, a sociedade pode ser entendida como um todo orgânico, no qual a ordem entre as partes coordena o convívio, prima pela harmonia e busca alcançar o bem comum, segundo o filósofo Aristóteles (VINI, 2006). Nesse sentido, o interesse público é o fator que viabiliza a conservação da vida em comunidade, uma vez que o bem comum pode ser traduzido na busca, por meio da ação estatal, de propiciar um convívio harmônico e organizado como forma de manutenção da vida social. Não se está contra esse direito, mas, sim, contra os abusos que estamos assistindo. Há nítida impressão que se está se aproveitando da fraqueza do governo.
O Estado, em suma, pode ser entendido por coisa pública (res publica) que tem por liame o interesse de todos os indivíduos de viver em sociedade. Não é o que estamos assistindo. Interesses, aliás, legítimos, se sobrepõem acima da lei e a ordem. Já prescreve a Carta Maior: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...].
O direito que os caminhoneiros de fazer suas paralisações é o mesmo que tem o restante da população de trafegar livremente pelas estradas, seja o usuário comum ou os produtores com seus produtos. Não são grevistas- por mais justas que sejam suas demandas- que vão dizer se posso ou não me deslocar numa estrada, mas a lei que me dá direito de ir e vir. As manifestações populares repousam no manto do exercício da democracia, não do autoritarismo ou violência. Art. 5º- inciso XVI –“ todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; [...].
E,ainda: “ XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (...). Essas manifestações de bloqueio de vias públicas são pacíficas? as manifestações populares são vistas como uma forma de comunicação e expressão coletiva, criando um espaço público de discussão. Ou seja, a sociedade civil institui com as manifestações populares uma esfera que transcende a hierarquia estatal, possibilitando a atualização das demandas sociais junto ao Estado, traduzindo os diferentes interesses, lutas e discursos sociais. Nessa medida, o sujeito de direito individual cede lugar a um sujeito social e coletivo responsável pelo exercício da cidadania ativa - sujeito coletivo de direito.
Nesse sentido, mostra que a defesa dos valores republicanos e democráticos é imprescindível para o alcance da convivência social madura e do bom funcionamento do Estado e da comunidade em geral. Não é o que estamos assistindo. Portanto, embora as manifestações populares representem uma carga legítima de indignação e se constituam em uma caixa de ressonância das mais variadas demandas, trata-se de fenômeno social que carece maiores estudos e regulamentação. Não se pode abrir mão do Estado de Direito, sob pena de partirmos para os radicalismos e atos de violência, que resultarão, sem dúvida, ao final, sem qualquer reparação aos prejudicados, dado o clima atual do Brasil de ganhar no grito, na violência, silenciando os contrários ao meu pensamento, pela intimidação, dossiês; ameaças.
Cabe destacar, ainda, que a violência presente nas manifestações populares, que ocorrem no Brasil a cada dia, agravam a conjuntura de instabilidade no país, criando uma atmosfera de medo, insegurança e desordem pública. Essa atmosfera de medo impacta diretamente todos os cidadãos, impondo a presença das forças públicas policiais no sentido de assegurar o direito de ir e vir do restante da população que não participa do movimento, manter a ordem e viabilizar o convívio social, direitos esses também assegurados na Constituição de 1988.
Não há direito absoluto. Todos os direitos são relativos. Desta forma, desde que não afetem os direitos e garantias de outro cidadão é livre a manifestação e expressão no Brasil, não necessitando de prévia autorização, desde que não ofendam direito e garantia fundamental de outros cidadãos.
Nos últimos tempos – especialmente depois das manifestações de julho de 2013 – temos visto no País certa confusão entre o direito de se manifestar e o desrespeito à ordem pública. Não se trata de criminalizar a liberdade de expressão, mas de reconhecer o fato: as manifestações não têm sido pacíficas, em geral. Há de se reconhecer que o caráter pacífico não exige apenas não portar armas ou a preservação do patrimônio público e privado. As manifestações não podem impor às cidades e ao país, o caos, a desorganização econômica, a privação de bens e produtos.
O limite, portanto, é a lei. Bloquear rodovias federais, piquetes e ameaças físicas e intimidações, não estão incluídos no direito de manifestação, nem ainda impedir o tráfego de veículos com animais, combustíveis ou cargas perecíveis. O desrespeito à ordem pública é desrespeito a todos os outros cidadãos, que têm igual direito de usufruir do espaço público.
Ao bloquear rodovias confere-se um caráter autoritário e antidemocrático às manifestações, e fatalmente, o apoio e legitimidade popular são perdidos. O protesto contra decisões do poder público (aumento do preço do óleo diesel) é legítimo e o direito de manifestação deve ser sempre garantido. Manifestações fazem parte de toda democracia madura.
Mas também faz parte de uma democracia real coibir o vandalismo, a violência e o caos social e econômico que estamos vivendo. Uma coisa é o protesto, sintoma de qualquer sociedade saudável, outra coisa bem diferente é a prática de crimes. Cabe ao Poder Público e também à sociedade não confundir essas duas realidades, sob pena de penetrarmos na barbárie, na convulsão social, na “lei da selva”, no vale tudo. Concluindo: pode-se afirmar, na situação atual, que qualquer manifestação popular é sempre boa, independentemente do fim a que se propõe, da origem de sua convocação e dos métodos utilizados? A resposta, penso eu, é negativa. As manifestações populares são sempre um meio, um exercício direto de poder que, segundo a Constituição, deve dar-se nos termos dela própria, não de vontade ou arbítrio pessoais ou de segmentos, por mais justas que sejam as reivindicações.
(*) Auremácio Carvalho é Advogado.