O Desvio de Conceitos
Recentemente, a doença de Chávez e o quadro da Venezuela foram temas de um mesmo texto publicado neste espaço, cujo pano de fundo não poderia ser outro senão as divergentes notícias a respeito de ambos. Resultado, obviamente, da falta de transparência nas ações dos agentes públicos. Isso, por outro lado, lista o referido país como um Estado não democrático.
Em função do referido artigo, dezenas de e-mails chegaram a esta coluna. A imensa maioria deles compartilhava da mesma opinião, enquanto apenas uma das correspondências era totalmente contrária ao que foi dito, sob a afirmação de que o Chávez tinha sido eleito diretamente pelo povo, “impondo uma massacrante derrota ao seu adversário”, isso “sem fazer campanha”. O missivista, desse modo, reduz a democracia ao voto, a eleição e a “livre” escolha do eleitorado. Desconhece, portanto, que a vida em democracia exige muitíssimo mais do que o simples se dirigir as urnas. Este “se dirigir” é importante, não tenha dúvidas, porém não o bastante. Aliás, em um dos capítulos de seus livros, intitulado “o governo do poder público em público”, Norberto Bobbio faz uma observação valiosa e pertinente: a democracia “é o governo do poder visível”, cuja natureza é “o fato de que nada pode permanecer confinado no espaço do mistério”, pois “o caráter público é a regra, o segredo a exceção”, a qual “não deve fazer a regra valer menos, já que o segredo” se justifica apenas no limite do tempo.
Isso deixa claro que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes, bem como de todos os agentes públicos devam ser conhecidos pelo povo. Nada pode ser jogado para debaixo do tapete. Muito menos os dados que, no seu conjunto, contrariam as verdades oficiais, a exemplo do que se vê na Venezuela. O esconde-esconde a respeito da real situação de saúde do presidente Chávez fere o princípio democrático, assim como também contraria este mesmo princípio o maquiar a verdadeira situação do Estado venezuelano, com um agravante, o atentado a Constituição para favorecer os chavistas.
Oportuna, neste particular, a entrevista, publicada em uma revista brasileira de circulação nacional, da senhora Blanca Rosa Mármol, tida como a última juíza independente da Corte Suprema da Venezuela. Ela “considera o atual governo ilegítimo e relata como o regime chavista submeteu o Judiciário às suas vontades”, a ponto, por exemplo, de não ter “nomeado uma junta médica para ir a Cuba avaliar a saúde de Chávez, com intuito de dizer se ele tinha ou não condições de governar”. E mais: a juíza considera “um equívoco terrível o apoio do governo brasileiro à manobra de Maduro para passar por cima” da Constituição, pois, ao dar este apoio, agride a democracia e a “independência judicial”.
Palavras duras, mas necessárias. Pois ajuda a desnudar um estágio de coisas que não combina com aquilo que se considera como democrático, a exemplo da prisão de uma juíza, Maria Lourdes Afiuni, (prisão domiciliar, sem direito a sair nem para ir ao dentista), em 2009, tão somente por conceder habeas corpus a um inimigo de Chávez.
Situação bastante diferente do Brasil atual. Ainda falta muito para avançar. Mas, por aqui, vinte e cinco dos quarenta mensaleiros foram condenados pelo STF, e, entre eles, gente bastante próxima do governo passado. Julgamento considerado um divisor de águas. Capaz de deixar o país com um cenário bem melhor. Inclusive com a perspectiva de que este retrato, o do julgamento, mude o comportamento dos tribunais regionais, e as prisões brasileiras deixem de receber apenas os condenados pobres e sem prestígio econômico e de poder político.
Cenas de uma realidade desconhecida, não vivida pelos venezuelanos. Estes, pelo menos em uma grande parte, querem por ora o fim da submissão absoluta em relação ao governo. Isso é um grande passo para se alcançar o mundo da liberdade – instrumento de conquista da cidadania.
Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.