Martelando Thor
Todos os dias morrem no trânsito cerca de 200 brasileiros, segundo levantamento do prof. Mauri Panitz, da PUC/RS. Todos os dias cerca de 10 ciclistas são mortos atropelados, como é atropelado o princípio do Código de Trânsito, segundo o qual os veículos motorizados são responsáveis pela segurança dos não-motorizados. São chefes-de-família, trabalhadores, pobres, as maiores vítimas entre os ciclistas. Nós, jornalistas, não ligamos muito para eles. Só noticiamos quando é ciclista de classe média ou média alta, como aconteceu duas vezes este ano em São Paulo. Quando o pedreiro ao volante de um velho fusca, muito bêbedo e sem habilitação, atropela um ciclista sóbrio no acostamento, ainda assim nós, jornalistas, não damos destaque algum ao acontecimento.
Mas quando alguém atropela um ciclista que atravessa à noite, com mais de 15dg de álcool por litro de sangue, uma pista de 110km/h, e o atropelador está ao volante de um Mercedes SLR Mc Laren e é filho de um dos 10 homens mais ricos do mundo, então nós noticiamos sem parar. E damos ao noticiário todas as características de julgamento e condenação do motorista. Nesses últimos 10 dias em que o acidente não saiu do noticiário, tento descobrir por que temos dois pesos e duas medidas para atropelamentos de ciclistas.
Fico pensando se não morremos de inveja de quem tem Mercedes, ou se não odiamos os ricos, embora não consigamos condenar os corruptos. O avô do motorista que atropelou, Eliezer Batista, foi ministro do presidente João Goulart. Antes disso e depois disso, fez crescer a estatal Cia.Vale do Rio Doce. Poliglota, passou ao filho Eike a cultura do trabalho. Ainda jovem, Eike estudava no Canadá quando começou a trabalhar com mineração. É um modelo de empresário de sucesso. É possível que tenha transmitido ao filho Thor a educação de casa. Thor, após o acidente, socorreu a vítima, procurou a família de Wanderson, 30 anos, e fez questão de soprar no bafômetro, embora voltando de uma comemoração com amigos. Seu pai, Eike, é conhecido por pedir suco, nos restaurantes.
Veja desta semana não foge à regra que dar destaque ao atropelamento e termina seu texto com uma ironia: "A conclusão mais provável será a de que Wanderson causou a própria morte". O comandante Celso Franco, que botou ordem no trânsito do Rio há mais de três décadas, e hoje é consultor de seguradoras para levantar culpa em sinistros, me mandou um texto lembrando que o motorista que tenha bebido e esteja infringindo a lei, "está assumindo o risco de matar". E faz o contraponto: o ciclista alcoolizado e sem sinalização luminosa na bicicleta, que entre à noite numa pista de velocidade, "está assumindo o risco de morrer." O episódio faz lembrar que não se dá carro potente, estimulador de velocidade, a filho jovem; Thor já praticou muita infração por isso. Nem a lei deveria permitir que recém-habilitado dirija em estrada e, digamos, carro acima de 150HP. Mais uma morte a ser lamentada. E se lamenta também muito preconceito e ideologia a se misturarem com jornalismo.
Alexandre Garcia é jornalista em Brasília