SAMUEL SABINO
A era da intolerância aos intolerantes
Antigamente pouco se questionava sobre as consequências de determinadas ações intituladas de “brincadeiras” que tinham como característica alguma demonstração de preconceito, ofensa ou degradação envolvendo alguém ou algum grupo. Termos como o Bullying não estavam na pauta diária e os limites para o que era considerado humor estavam fracamente conceituados.
Simplesmente não se pensava nas consequências de tratar certos assuntos e grupos sociais como inferiores através de uma “piada”. Não se enxergava a opressão que roubava a dignidade. A postura moral era ignorada, alimentando, até inconscientemente, comportamentos nocivos.
Felizmente, vivemos em tempos onde o olhar em cima dessas situações se tornou crítico, mais esclarecido e mais atento aos erros passados. Muitos ainda dizem “o mundo está ficando sem graça” ou “tudo é polêmica”, mas a questão é que em diversos níveis é preciso que haja reflexão real, e a maioria das pessoas já começa a se dar conta disso trazendo à pauta pontos que antes eram considerados “inofensivos”, mas que perpetuavam estereótipos, preconceitos e até mesmo crimes.
Com os tempos mudando, fazer uma piada com o antissemitismo, ou atrelada ao Nazismo em algum nível, pode parecer algo impensável, já que em relação a esse assunto há quase uma unanimidade quanto a absurdo que isso seria. No entanto, no começo de 2017, Feliz Kjellberg, o Pewdiepie, que é o Youtuber mais popular do mundo, com 50 milhões de inscritos em seu canal, mostrou em um de seus vídeos, dois indianos segurando um cartaz onde estava escrito “Morte à todos os judeus” e tratou a situação como uma piada. Como consequência, ele perdeu seu patrocínio com a Disney e com o Youtube, além é claro de milhares de inscritos.
Mas como se chegou ao absurdo de até mesmo isso ser considerado “piada” pelo Youtuber? Simples. A falta de ética na cultura vem tratando como inofensivas diversas posturas onde a dignidade é deixada de lado. É apenas uma questão de encadeamento do pensamento. Acostumados a abandonar a dignidade de um grupo para manter uma “piada”, aos poucos se chega a fazer o mais absurdo e transformar o ódio aos judeus em algo aceitável novamente. Não estou dizendo que por causa disso vai acontecer um novo Holocausto.
Apenas que o reforço em uma cultura de preconceito, evoluí, se aprofunda, e por fim faz vítimas. E é isso que já não é mais permitido hoje em dia. Não vivemos mais em uma época onde oprimir um grupo é algo que pode ser considerado “engraçado”. No pseudo humor do Youtuber, aquilo era algo divertido. No mundo real, foi preconceito e apologia a uma das maiores atrocidades já realizadas pela humanidade.
O debate correu solto pelas redes sociais e mídias, já que vivemos tempos de discussões sobre limites entre crítica, humor e perpetração de preconceito ou práticas nocivas. Hoje, já não é aceitável fazer “piadas” com negros, homossexuais, mulheres, por exemplo. A sociedade chegou a um ponto de consciência moral que entende como isso é prejudicial, como é ofensivo e venenoso, não só aos grupos alvo, mas a todos como seres humanos. Não se pode permitir que atitudes como essa fiquem impunes, porque o pensamento da sociedade está mudando, se alinhando à moral positiva.
O espaço para esse tipo de atitude já não existe e, cada vez mais, o debate saudável encontra limites construtivos para perpetuar a dignidade humana e o respeito. Como consequência, até as empresas estão mais cautelosas com relação a quem associam seu nome, fazendo com que não importasse para a Disney os milhões de inscritos do Pewdiepie e sim a imagem que ela estaria passando a seus consumidores se apoiasse essa postura. A ética ganha novo lugar nas relações empresariais porque ela já vem ganhando lugar de destaque nas relações sociais, culturais e, por fim, humanas.
Na história da humanidade sempre houve o opressor e o oprimido. O universo animal sempre se apoiou na lei do mais forte, porém, para os seres humanos isso não é válido, pois não somos apenas dotados de dignidade, mas reclamantes da mesma e seres de raciocínio.
A lei busca nos proteger, mas é na moral que somos defendidos dos erros passados e presentes que estão enraizados como cultura. O esclarecimento se conquista aos poucos e é podando atitudes como essa que se evita novos “Holocaustos”. A maioria das pessoas não sabe, mas a Eugenia, que inspirou as atitudes de Hitler, tem seu pai em Francis Galton, um inglês, e sua prática como um ato de “limpeza genética”, com direito a castração química, começou nos Estados Unidos pré Segunda Guerra.
O que se tornou um massacre partiu de ideias praticadas por grupos que mais tarde foram aclamados como heróis. Isso levanta a questão sobre onde começam ações hediondas e o cuidado que se deve ter na hora de manter e conquistar respeito e dignidade para o ser humano. Atitudes de violência à dignidade devem ser combatidas com esclarecimento, com ética, com mudança moral. A postura da Disney é louvável no sentido de transformar em empresarial as consequências da irresponsabilidade moral. Grandes ações de crueldade são evitadas com posturas tolerantes diárias.
Curiosamente, foi no pós Segunda Guerra, com o Código de Nurembergue, que o mundo começou a mudar. A passagem da era do consumo para a da informação, nos anos 1990, também foi um forte fator. Com isso passou-se a refletir em cima do poder que a impunidade dava aos intolerantes e isso nos levou a uma evolução histórica que está culminando nessa primeira metade do século XXI.
Quando a mudança é legal, apenas, isso não se reflete no comportamento real da sociedade, mas quando o esclarecimento é moral e, por sua vez, gera ações éticas, se repensa o que aconteceu. As ideias de eugenia foram quase extintas. O acesso a informação gerou conhecimento e debate. Tudo como reflexo da compreensão de onde aquela postura levou a humanidade. Graças ao acesso à informação, trazido pela internet, o oprimido ganhou voz, se tornou protagonista e inclusive pode dizer ao opressor que atitudes pequenas como uma “piada” reforçavam culturas de perda de dignidade.
Hoje, se entende a necessidade de considerar o ser humano como fim último do esclarecimento como ferramenta de crescimento. O século XXI é detentor de uma sociedade intolerante à intolerância e esse é um dos primeiros passos para criar gerações mais conscientes, mais cheias de ética nas posturas. Está na informação da ética, a raiz motora de todo movimento igualitário e discussão que leva nossa sociedade a uma era de dignidade.
Samuel Sabino é fundador da Éticas Consultoria, Filósofo, Mestre em Bioética, e professor na Escola de Gestão da Anhembi Morumbi.