‘Inaceitável’, diz Doria sobre frase de Bolsonaro para presidente da OAB
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), criticou nesta segunda-feira 29 a declaração do presidente Jair Bolsonaro em relação a Fernando Santa Cruz – pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz -, desaparecido durante a ditadura militar, quando militava na APML (Ação Popular Marxista Leninista), grupo de esquerda que combatia o regime.
“É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou. Foi uma declaração infeliz”, afirmou Doria, em evento no Palácio dos Bandeirantes. “Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em 10 anos de exílio pela ditadura militar”, disse o governador.
Mais cedo, Bolsonaro criticou a OAB e Felipe Santa Cruz – que têm sido crítico ao governo – e declarou: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, disse Bolsonaro. Em nota oficial, os advogados prestaram solidariedade a Santa Cruz e todas as famílias de quem foi morto, torturado ou desaparecido ao longo da história, especialmente durante o regime militar.
Outros políticos criticaram a declaração presidencial. O deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) cobrou um posicionamento do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público Federal e dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. “Não podemos mais tapar o sol com a peneira. Bolsonaro tem que ser impedido. Ele é um criminoso que idolatra genocidas, torturadores e ditadores. Ele e seu clã miliciano conduzem o país para um estado policial autoritário que corrói a democracia e as instituições da República”, disse.
Questionado por VEJA se ele entraria com um pedido de impeachment, Pimenta afirmou que vai aguardar o posicionamento do Congresso, do MPF e do STF. “Cabe a eles, em um primeiro momento, a defesa da Constituição e o contraponto a esta escalada insana promovida por Bolsonaro”. Ele disse que vai discutir o episódio com a sociedade civil e partidos da oposição. “E o impeachment não pode ser descartado”.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) também se solidarizou com Santa Cruz: “O terrível assassinato do pai de uma pessoa não deve servir de arma para politicagem. Quando o infrator da regra civilizacional básica é o presidente da República, mais grave é o fato. Nunca no Brasil se viu coisa igual”, afirmou.
Entidades
Antes, o Conselho Federal da OAB, o Instituto dos Advogados Brasileiros e a Anistia Internacional já haviam criticado o presidente pela declaração.
“Todas as autoridades do país, inclusive o senhor presidente da República, devem obediência à Constituição Federal, que instituiu nosso país como estado democrático de direito e tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, na qual se inclui o direito ao respeito da memória dos mortos”, disse, em nota.
O Instituto dos Advogados Brasileiros cobrou uma atitude do MPF. “Além da postura incompatível com o exercício do cargo de chefe de Estado, o presidente da República vem a público dizer que supõe ter conhecimento de fatos criminosos ocorridos, o que está por merecer esclarecimentos ao Ministério Público Federal que não pode, em nome do estado de direito, ignorar tal pronunciamento.”
A Anistia Internacional, por meio de sua diretora-executiva Jurema Werneck, também condenou a fala do presidente: “É terrível que o filho de um desaparecido pelo regime militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no país, declarações tão duras”, disse.
“Crueldade”
Felipe Santa Cruz também manifestou-se em nota pessoal, encaminhada a amigos por sua conta no WhatsApp. Ele afirmou que Bolsonaro desconhece a diferença entre público e privado e demonstrou, mais uma vez, “crueldade” e “falta de empatia”.
Em seu texto, o presidente da OAB — que tinha menos de dois anos quando o pai foi detido — classificou de “inqualificáveis” as declarações de Bolsonaro: “É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, escreveu.
Fernando e seu amigo Eduardo Collier Filho foram presos em 1974 por agentes da ditadura militar e nunca mais foram vistos — são considerados desaparecidos. Santa Cruz ressalta que sua avó morreu recentemente, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. “Se o presidente sabe, por “vivência”, tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais ‘desaparecidos’, nossas famílias querem saber”, disse.
Segundo documentado pela Comissão Nacional da Verdade, Fernando não participou da luta armada. Em 2012, no livro Memórias de uma Guerra Suja, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra diz que o corpo foi incinerado no forno de uma usina de açúcar em Campos (RJ).