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Terça - 24 de Janeiro de 2012 às 13:46
Por: Lourembergue Alves

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Interior e metrópole são partes de uma mesma estampa, e esta, por sua vez, não seria o todo sem aquelas, as quais, juntas e entrelaçadas, têm muito a oferecer ao transeunte, que necessita tão somente fazer as leituras devidas. Pois os ditos cenários têm bastante a proporcionar. Surpresas, inclusive. Como a que se vê em Mafra. Cidade acanhada, tipicamente interiorana, mesmo às portas da capital lusitana. Passaria fora de quaisquer roteiros turísticos se não fosse o seu convento. Importante não apenas por sua característica barroca, mas igualmente pela fabulosa biblioteca que possui.

São mais de quarenta mil livros. Cuidadosamente alinhados e perfilados em prateleiras que formam uma cruz. Oitenta e quatro metros de comprimento e nove metros e meio de largura, com a parte horizontal a medir vinte e dois metros. Estar entre todos aqueles livros tem-se uma sensação incrível. Possivelmente idêntica a que sentiu o garoto quando se encontrava no cemitério de livros, levado pelo pai, na história contada por Zafon, em “A sombra do vento”. O garoto não consegue disfarçar a emoção no instante em que seus olhos percorrem as estantes abarrotadas de “vidas” e de “memórias”, e precisa escolher um para adotar dentre centenas ali expostas. Decisão nada fácil. Igualmente não seria para o visitante do referido convento se tivesse que fazer a mesma escolha. Ainda mais diante de tantas e variadas opções de textos, que vão desde a área da saúde até a poesia, passando pela história, geografia, direito, filosofia e teologia. Obras para iluminista algum reclamar. Raras, inclusive, a exemplo de “Orationes” de Cícero (1472), “Ópera Otavia” de Homero e a famosa “Crônica de Nuremberg” (1495).

Em meio às dificuldades de escolha, aflora a felicidade do estar ali. Recinto, onde as “vozes” – sufocadas pelas páginas fechadas - se fazem ouvir tão logo qualquer um daqueles livros é aberto. Rompem o silêncio, necessário e obrigatório em quaisquer bibliotecas. É nessa hora, e não sem razão, que o leitor se deixa levar pelas palavras, sem, contudo, perder de vista sua condição de sujeito, a qual lhe permite dialogar com os autores. Diálogo que possibilita a compreensão da mensagem escrita, bem como as não ditas, porém latentes nas entrelinhas.

Nesse exato momento, a funcionária começa atender a outro visitante. O que interrompe o sonho de folhear um daqueles volumes, separados pela corda que atravessa uma ponta a outra das paredes, impedindo a passagem. Era o fim da visita. Retorno pelos mesmos corredores de chegada, onde se davam às salas cheias de quadros e objetos cuidadosamente em exposição.

O convento se junta à basílica e o palácio. Este serviu de uma das residências da família real no século XIX. Complexo grandioso. Quarenta mil metros quadrados, cuja fachada se estende por duzentos e vinte metros. Construído no século XVIII, e onde “vidas” se entrelaçam e se faz presente no hoje, apesar das distâncias marcadas pelo tempo.

Entende-se, agora, a importância do dito convento para José Saramago, que o homenageou com um de seus escritos, intitulado “Memorial do convento”. Obra que se associam aos comentários de quem teve a oportunidade de estar em visita ao convento de Mafra. Visita que é, na verdade, uma viagem, que não se limita ao pretérito, nem é norteada pelo presente. Pois entre um pólo e outro, sempre existirá a doce lembrança do estar entre aqueles livros, os quais antes de tudo são igualmente objetos – de grandiosa utilidade, apesar de permanecer longe das mãos dos visitantes da biblioteca.

Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.   



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