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Segunda - 28 de Março de 2011 às 13:26
Por: Silio Boccanera

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Silio Boccanera é articulista político internacional e escreve em A Gazeta todas as segundas-feiras
Silio Boccanera é articulista político internacional e escreve em A Gazeta todas as segundas-feiras

Mal transcorrida uma semana de ação militar estrangeira contra Muamar Kadafi na Líbia e crescem os protestos contra a iniciativa de apelar às armas de estrangeiros para conter a repressão interna do coronel enfurecido, apesar da autorização prévia das Nações Unidas, através de uma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança, sem voto contra.

O Brasil, membro temporário do Conselho de 15 países que efetivamente dá as ordens na organização, se absteve naquele voto, como também o fizeram Alemanha, China, Índia e Rússia. Mas assim que os ataques começaram, Brasília se assustou com a dimensão das operações e pediu cessar-fogo, ao mesmo tempo em que os outros quatro ecoaram restrições ao que lhes pareceu como excessos no cumprimento da resolução.

Poucos foram tão longe na retórica anti-intervenção na Líbia do que o primeiro-ministro russo Vladimir Putin, que viu defeitos na resolução da ONU, que "permite tudo". Putin foi mais longe numa comparação ousada: "parece uma convocação medieval para uma cruzada".

Até o presidente Dimitri Medvedev, que de hábito se curva ao influente antecessor, se sentiu na obrigação de dizer que o termo "cruzada" era inaceitável. De fato, o mundo muçulmano é extremamente sensível a essa palavra, que por isso mesmo tem sido usada por Kadafi para qualificar seus atacantes estrangeiros.

Na Alemanha, o ministro de relações exteriores, Guido Westerwelle, reclamou de crescimento da ação militar na Líbia, confirmação das apreensões do governo alemão ao se abster no voto da ONU.

De forma parecida reagiu o governo turco, que revelou preocupação com crescimento e alargamento da iniciativa militar na Líbia. Como membro da Otan, a Turquia resistiu ao envolvimento dessa aliança militar no comando da operação, mas acabou cedendo diante de pressão do presidente Obama, que busca retirar os Estados Unidos do papel de líder da ação militar estrangeira na Líbia e quer passar a bola a outros países ou organizações.

Muitos críticos citam a postura confusa da Liga Árabe, que logo após o início da operação militar por aviões americanos, britânicos e franceses pareceu voltar atrás em seu apoio à ação militar na Líbia. Uma declaração do secretário-geral Amr Moussa, em crítica aos ataques aéreos, acabou atribuída a um mal-entendido e ele se apressou - ou foi apressado -- em dizer que apenas manifestava preocupação com o risco de atingir civis.

De fato, governos, organizações e indivíduos pelo mundo alertam contra o perigo habitual de atingir civis - o chamado "efeito colateral" - como continua a ocorrer em operações militares do gênero, do Iraque ao Afeganistão, apesar das promessas dos generais de tomar cuidado.

O governo Kadafi denuncia mortes de civis como resultado do bombardeio aéreo, mas apesar da insistência dos jornalistas estrangeiros em Tripoli em encontrar as vítimas, os assessores de Kadafi - que controlam o movimento das equipes - ainda não mostraram ninguém, além de soldados feridos. Até agora, os repórteres só encontraram alvos militares.

Existe uma preocupação geral entre críticos e defensores da iniciativa militar diante do potencial de ampliação dos ataques além do que a ONU autorizou, visando apenas proteger as forças de oposição contra uma repressão brutal de Kadafi. O próprio coronel e sua família seriam alvos legítimos? Pode-se armar e ajudar as forças insurgentes?

O destino de Kadafi virou foco de debate internacional sobre a operação na Líbia. Mesmo entre os que apoiam a ação militar atual, muitos insistem que não cabe às forças estrangeiras derrubar o líder líbio ou mesmo se aliar aos rebeldes. Devem se limitar a impedir massacre da população, conforme a resolução da ONU.

Alguns analistas sugerem que esse objetivo é inalcançável sem a eliminação de Kadafi. Citam o exemplo da Guerra do Golfo, em 1991, quando Saddam Hussein foi derrotado após ter invadido o Kuwait e retirou as tropas de lá. Mas deixado no poder em Bagdá, realizou novos massacres de opositores internos.

Curiosamente, representantes das forças rebeldes em luta contra Kadafi, tanto na Líbia quanto no exterior, se mostram a favor da ação militar estrangeira. Pelo menos reagem assim até o momento, o que não descarta mudarem de ideia conforme a intervenção estrangeira cresça e o "efeito colateral" se espalhe, a exemplo do que ocorreu após a invasão anglo-americana ao Iraque.

Muitos líbios entrevistados nas vizinhanças de Benghazi, controlada pelos rebeldes, chegam a sugerir até que a missão militar estrangeira vá mais longe do que a meta atual de apenas destruir a capacidade militar de Kadafi e recomendam atacar o próprio líder e sua família. No entanto, mesmo os mais inflamados defensores da ação militar em andamento rejeitam a ideia de tropas estrangeiras no solo líbio.

O caso da Líbia reacende também a discussão sobre intervenção militar estrangeira em países onde ocorram abusos extremos de direitos humanos, "limpeza étnica" ou genocídio. Chris Nineham, diretor da organização militante Stop the War, com sede em Londres, me disse em entrevista esta semana que se opunha a qualquer intervenção desse tipo, mesmo sob autorização da ONU. Citou os exemplos da Sérvia e do Kosovo como prova de que supostas boas intenções acabam criando mais vítimas do que pretendia evitar.

Mas o que dizer de Ruanda, por exemplo? Mais de 800 mil pessoas do grupo étnico tutsi foram massacradas em 1994 por compatriotas de outra etnia, os hutus, enquanto os países ocidentais nada fizeram, apesar de tomar conhecimento do que se passava - fotos e imagens de TV correram o mundo rapidamente. Deveriam ter interferido e evitado o genocídio?

Outro exemplo que demonstra como não é fácil estabelecer regras tão rígidas vem de Serra Leoa, o pequeno país da África Ocidental, ex-colônia britânica, onde uma guerra civil misturada a ambições criminosas no comércio de diamantes levou um grupo rebelde ao barbarismo de decepar mãos e pés dos adversários e seus supostos simpatizantes, inclusive bebês de colo.

O massacre prosseguiu durante vários meses e só chegou ao fim quando o tropas britânicas invadiram o território e derrotaram os rebeldes ainda manchados do sangue de suas vítimas. Fim das mutilações e da violência que se espalhava cada vez mais num país onde o governo fazia parte da rapina. Intervenção estrangeira condenável ou acertada?

Silio Boccanera é articulista político internacional e escreve em A Gazeta todas as segundas-feiras; E-mail: silioboccanera@aol.com


 


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