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Segunda - 21 de Fevereiro de 2011 às 16:37
Por: Silio Boccanera

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Silio Boccanera é articulista político e escreve em A Gazeta às segundas-feiras
Silio Boccanera é articulista político e escreve em A Gazeta às segundas-feiras

Se o medo do Ocidente em relação à revolta que sacode o mundo árabe é de que extremistas religiosos islâmicos possam tomar o poder, não custa dar uma olhada na vizinha Arábia Saudita, onde eles já estão no comando há muito tempo. Grande aliada de americanos e europeus - tanto pela posição estratégica como pelo fornecimento de petróleo - a Arábia Saudita submete seus 25 milhões de habitantes a um regime monárquico repressor, retrógrado e alérgico a valores democráticos ou a mudanças que impliquem mais do que artigos para consumo ou amenidades desde ar-condicionado a prédios de arquitetura avançada. O que a estrutura de poder não quer mudar é a sociedade e quem a controla.

Especialistas na região afirmam que são remotas as possibilidades de uma insurreição popular em terras sauditas ao estilo das que acabam de ocorrer no Egito ou na Tunísia e parece ameaçar alguns vizinhos. Mesmo se ocorresse, esbarraria em Estados Unidos e Europa armados para defender a estabilidade do regime que há décadas lhes garante a fonte básica de energia: o petróleo.

Washington, Londres ou Paris nem precisam ter amores pela dinastia saudita que exerce poder absoluto ali desde a criação do país, em 1932 (o rei de plantão é Abdula, 86 anos e doente), mas sucessivos governos ocidentais cultivam as alianças com a família real saudita, pouco importa como ela trate seus cidadãos. E trata mal quem não é da elite, pior ainda se for mulher.

A monarquia saudita adota e defende uma versão tradicionalista da religião muçulmana, o wahabismo, que, entre suas práticas, impede mulheres de dirigir e de sair em público ou trabalhar sem autorização de um homem - marido, irmão ou parente. Uma polícia religiosa atua nas ruas como fiscal de bom comportamento. Adultério pode ser punido com decapitação, ladrões podem ter as mãos decepadas.

Da Arábia Saudita saíram Osama Bin Laden e quinze dos 19 terroristas-suicidas que participaram dos ataques de 11 de setembro 2001 nos Estados Unidos. Nasceram e foram criados naquele ambiente de extremismo religioso, que eles sem dúvida levaram a um nível ainda mais radical, mas já absorviam valores daquela sociedade intolerante. Curiosamente, a represália ocidental foi contra Afeganistão e Iraque, nada contra a Arábia Saudita.

Quem também nasceu nesse extenso pedaço de deserto foi o profeta Maomé, iniciador da religião islâmica, com base nas mensagens divinas que ele teria recebido, compiladas literalmente no livro sagrado, o Corão. A cidade de Meca, onde ele vivia, é até hoje local de peregrinação quase obrigatória para muçulmanos do mundo inteiro e, junto com Medina, onde o profeta também viveu, de acesso proibido a não seguidores da religião islâmica. A Arábia Saudita não tem um só prédio, templo ou igreja de outra religião.

Para entender melhor esse país, os livros do historiador britânico Robert Lacey prestam enorme ajuda. Há trinta anos o autor entra e sai da Arábia Saudita regularmente, passa longas temporadas morando e pesquisando lá para escrever sobre o país. Seu livro Kingdom (Reinado) saiu nos anos 80. E agora ele lança Inside the Kingdom (Dentro do Reinado), uma atualização do que se passa nesse país tão pouco conhecido fora de suas fronteiras, porém influente de maneira até dramática.

Lacey vai além da descrição de um governo monárquico que combina aspirações de modernidade com práticas mais apropriadas ao século VII, quando Maomé vivia cercado de inimigos e conspirações contra a nova religião. Daí os preceitos no Corão para enfrentar esses adversários com violência, se necessário, o que alguns militantes tomam até hoje como receita para atacar todos os não-muçulmanos.

O governo saudita é um "arranjo", um acerto entre a família real e líderes religiosos dos mais tradicionais e conservadores no mundo islâmico. Mais até do que no Irã, que pelo menos passou por períodos seculares, antes da revolução dos aiatolás, em 1979. A Arábia Saudita, que só passou a existir como entidade política no século XX, nunca conheceu um período não-religioso ou democrático.

As leis na Arábia Saudita seguem a Sharia, conjunto de princípios religiosos extraídos não de uma constituição ou de um código de leis civis criadas ao longo do tempo, e sim do Corão, o livro sagrado. Segundo a fé muçulmana, Deus (Alá) passou o texto do Corão diretamente ao profeta Maomé, o que tornaria o livro perfeito, intocável e acima de qualquer lei criada pelo homem. Seria como se, no Brasil, os tribunais julgassem um processo com base não nos códigos civis, penais, comerciais ou na Constituição, mas no texto da Bíblia. O problema imediato, claro, é: quem vai interpretar o texto?

As diversas interpretações das palavras de Deus no Corão ou das práticas e ensinamentos de Maomé em vida (o hadith) produzem conclusões diferentes entre 1 bilhão 300 milhões de muçulmanos pelo mundo. Inclusive sobre o uso da violência contra os crentes de outras religiões ou quem se considera ateu.

As facções mais modernas do Islã preferem ver metáforas nas palavras inscritas no livro sagrado no século VII, exigindo adaptações para a época atual. Há também, no entanto, os defensores da interpretação literal do Corão e da prática de Maomé em vida. São os fundamentalistas, que em suas manifestações extremas propõem até o uso de violência na propagação de sua religião e destruição dos que eles consideram inimigos do Islã, porque assim diz o texto, pouco importa se as referências tratam daquela época de ataques ferozes aos novos adeptos e não do mundo moderno.

A Arábia Saudita é o berço mais fecundo dos fundamentalistas, desde os que não passam da retórica, como alguns lideres religiosos tradicionalistas locais, até os que se empenham numa guerra santa ou jihad, que inclui o uso da força e da violência em defesa do que acreditam ser o Islã. Nesta segunda categoria está Bin Laden.

Apesar das explosões populares na vizinhança, não surgiram ainda sinais parecidos na Arábia Saudita. Como foi dito acima, especialistas acham difícil ver o povo nas ruas sauditas pedindo reformas. Por outro lado, o país é tão fechado, tão misterioso, que pode até surpreender o mundo com manifestações pró-democracia inesperadas. Aí então será curioso ver a reação ocidental.

Silio Boccanera é articulista político e escreve em A Gazeta às segundas-feiras. E-mail: silioboccanera@aol.com



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