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Sexta - 07 de Julho de 2017 às 14:10

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Raul Lara Leite, é juiz de Direito em Mato Grosso, membro da Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas do TJMT
Raul Lara Leite, é juiz de Direito em Mato Grosso, membro da Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas do TJMT

Este artigo tem por finalidade provocar a comunidade jurídica, em especial juízes e promotores, para o aprofundamento das questões relacionadas ao enfrentamento eficiente da problemática das drogas, sobretudo no que diz respeito às comunidades terapêuticas.

De início, conceituo as casas terapêuticas como instituições privadas, sem fins lucrativos e financiadas, em parte, pelo poder público e muito relacionadas às instituições religiosas.Realizam acolhimento de pessoas, em caráter voluntário ou compulsoriamente, leia-se: com ordem judicial, com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa, pelo que, a meu entender, integram sim o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –SISNAD.

Todavia, as comunidades terapêuticas não são consideradas estabelecimentos de saúde, mas de interesse e apoio das políticas públicas de cuidados, atenção, tratamento, proteção, promoção e reinserção social dos drogaditados.

Dessas iniciais considerações,chego a seguinte premissa,as casas terapêuticas se apresentam como mais um instrumento, ao lado de grupos de apoio, terapias coletivas, inserção em programas sociais, Centro de Atenção Psicossocial - CAPS (Álcool e Drogas e Adolescer), internação em sistema ambulatorial e outros,como forma de intervenção junto ao adicto.

Só para situarmos o atento leitor, no Brasil mudam-se os nomes, mas os problemas continuam os mesmos, primeiro eram drogados, depois, dependentes químicos e agora o termo correto é adicto, ou seja, a pessoa dependente de drogas.

A propósito, a Política Nacional sobre drogas teve início no ano de 1998, após a realização da XX Assembleia Geral Especial das Nações Unidas, em que se discutiram princípios diretivos para redução da demanda de drogas, aderidos pelo Brasil. Tendo sido criado Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), que foi transformado no Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) e foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD).

Por sua vez, a SENAD, no ano de 2006, coordenou um grupo de trabalho do governo que culminou na aprovação da Lei Federal nº. 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).

O Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), por meio da Lei Federal nº. 11.754/2008, passou a ser chamado de Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, sendo as ações descentralizadas pelos Conselhos Estaduais e Conselhos Municipais.

A Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) reconheceu a diferença entre a figura do traficante e do usuário/dependente, que passaram a ser tratados de modo diferenciado e ocupar capítulos diferentes da Lei, pelo que não devem ser penalizados com privação de liberdade. Aliás,pesa sobre o artigo 28 fortíssimos indícios de inconstitucionalidade , mais deixo para outra oportunidade esta discussão. Fato é que a Política do Conselho Nacional de Justiça-CNJ aliada à nova Lei de Drogas mudaram os rumos da visão do Poder Judiciário, passando a Justiça retributiva a ser substituída pela Justiça restaurativa, com objetivo de ressocialização,através de penas alternativas.

Atualmente a dependência química, adição, está sendo caracterizada como um transtorno mental, catalogada na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Muito bem, até aqui nenhuma novidade! O problema é que a Lei e os estudiosos esqueceram-se da figura intermediária, que diariamente os operadores do sistema legal, no meu caso Juiz Criminal, lidam.

Esta figura chama-se usuários-traficantes-dependentes ou traficante-usuário, adicto, drogado, podem escolher.Isto é, o escravo das drogas. Ele não se enquadra na figura do art. 28 da Lei de Drogas, e o que é pior, por ignorarmos a temática, é incluso por nós, no sistema prisional como se traficante fosse, nos termos do artigo 33 da Lei de Drogas, mas trata-se em verdade de um doente.

Disso temos duas consequências:

Primeira: colocamos na cadeia pessoas de baixa periculosidade, doente mentais, consoante a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), e os tratamos como se criminosos fossem.
Segunda: da cadeia saem formados na faculdade do crime e passam a praticar atos mais graves, como roubos, assassinatos e outros bárbaros crimes, como forma de manterem a sua dependência.

Veja a conceituação de dependência química: “A Dependência Química é considerada um transtorno mental, em que o portador desse distúrbio perde o controle do uso da substância, e a sua vida psíquica, emocional, espiritual e física vai se deteriorando gravemente. Nessa situação, a maioria das pessoas precisa de tratamento e de ajuda competente e adequada. DEPENDÊNCIA QUÍMICA NÃO É SIMPLESMENTE "FALTA DE VERGONHA NA CARA" OU UM PROBLEMA MORAL, É UMA DOENÇA COMO A DIABETES, o paciente não escolhe ter a doença, mas pode sim escolher fazer o tratamento, e assim como diabéticos controlam o açúcar no sangue com medicações e cuidados com a alimentação, o dependente químico pode buscar ajuda para controlar sua adicção e entender o ciclo da doença. É considerada uma doença BIOPSICOSSOCIAL .

Explico: precisamos desmistificar a questão relacionada às drogas no sistema judicial do Brasil.

Esta questão liga-se, adiciona-se, muito mais a noção de política pública de saúde, tanto é que se considera doença Biopsicossocial, do que a política repressiva criminal.
Sendo que neste último caso, aí sim, necessitamos de forte intervenção da força pública estatal na repressão e punição dos verdadeiros traficantes.

Dentre os dependentes, a questão que mais me toca é a questão dos traficantes-dependentes-usuários, que são aqueles que praticam pequenos delitos e venda de pequenas quantidades de drogas, para a manutenção de seu vício. Que na maior parte, são pobres, negros e marginalizados.

Assim, sustentado nos conhecimentos agregados na especialização ofertada pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso – UFMT, em inédita parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso - TJMT, por meio da Comissão Especial Sobre Drogas Ilícitas, coordenada manda do Desembargador Marcos Machado [que desenvolve estudos de viabilidade/efetividade da aplicação do Sistema Nacional de Políticas Sobre Drogas no Estado de Mato Grosso], ofertou-se aos magistrados o curso denominado de Justiça Restaurativa em Crack, Outras Drogas e Família pelo qual vários frutos nasceram.

Com efeito, após a oitiva dos notáveis profissionais que atuam no tema há décadas no país, médicos psiquiatras, enfermeiros, bioquímicos, assistentes sociais, psicólogos, professores de educação física, delegados de polícia, policiais civis, policiais militares, promotores de justiça, defensores públicos, advogados, acadêmicos, agentes prisionais e outros, rendo as minhas homenagens à professora, Delma Perpétua de Souza , expert no assunto, somado ao acesso a materiais de apoio, e mais de 80 (oitenta) horas aulas, afirmo que fui capacitado.

Desta feita ouso fazer três classificações: a) usuários simples – técnicas de ataque: utilização de métodos tradicionais (grupos de apoio, terapia, acompanhamento pelo CAPS, etc.); b) usuários-traficantes-dependentes – técnica de ataque: utilização de casas terapêuticas; c) traficantes – técnica de ataque: cadeia.

Assim, após ampla pesquisa (www.tjmt.jus.br – Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas), visualizo que o usuário-traficante-dependente é um DOENTE MENTAL. A ele se deve ministrar tratamento adequado, por meio de médicos, psicólogos e assistentes sociais, utilizando-se das casas terapêuticas como instrumentos de recuperação da pessoa.

Refletindo, juridicamente, chego a seguinte conclusão:Nós, juízes, bem sabemos quando estamos tratando desta categoria de ser humano, (usuários-traficantes-dependentes) e de duas uma, ou será colocado no cárcere e tornar-se-á um criminoso profissional revoltadíssimo, ou será posto em liberdade e voltará a reincidir na criminalidade para sustentar o vício.

É por isso que nós defendemos uma saída intermediária, que é a estruturação das casas terapêuticas, e/ou qualquer outro nome que possa ser dado a esta instituição, como forma de ministrar tratamento adequando ao dependente químico e reinseri-lo à sociedade.

Façamos uma análise realista, se a família do dependente químico for possuidora de posses, certamente colocará o familiar nas casas de recuperação. No entanto, se o adicto for de origem pobre é líquido e certo que residirá em uma de nossas cadeias.

Nesse espectro, o doente que pode se usuário, dependente, ou até mesmo usuário-traficante é sujeito de direitos, entre eles o seu devido tratamento para a garantia da adequada reinserção social, que inclusive encontra-se disciplinado pela Lei 10.216 de 2001.

A Lei de Saúde Mental (10.216/2001), objetiva garantir os direitos e proteção às pessoas acometidas por transtorno mental, entre eles os drogados,independente de nacionalidade, idade, família, recursos econômicos, entre outros.No art. 2º da mesma lei, são indicados os direitos garantidos aos portadores do transtorno e aos seus familiares nos atendimentos em saúde mental.

Entre tais direitos, o inciso V diz que o mesmo deve “ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária”, é garantido ainda ao usuário e familiares, em seu inciso VII, o recebimento do maior número de informações a respeito da sua doença.

Em relação aos recursos, o parágrafo segundo do art. 4º da Lei, estabelece que: “O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros".

Ainda no artigo 4º, em seu parágrafo primeiro, é explicitado que a internação deve ser aplicada em última ratio, ou seja, quando todos os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Assim, as casas terapêuticas poderiam unidades de desintoxicação ou tratamento da dependência química, observadas as regras de saúde pública e normas sanitárias.

Cabe ao Poder Legislativo fazer esta opção política fundamental, e ao Poder Executivo, dar o apoio necessário para a estruturação e reclassificação delas como estabelecimentos de saúde, e ao Poder Judiciário dar a Cezar o que é de Cezar , isto é direcionar os dependentes a estes estabelecimentos recuperativos.

Noutra ótica, a precípua finalidade das Políticas sobre Drogas é a reinserção social do dependente químico, protegendo a sua vida e dignidade. De mais a mais,garantir a ordem pública que se mostra extremamente violentada quando um adicto encontra-se nas ruas disponível para qualquer empreitada criminosa para solucionar a sua abstinência ao uso da droga.

Apesar da Lei de Drogas dedicar um título para as garantias do usuário e dependente, abordando sobre a política preventiva (capítulo I) e de reinserção social (capítulo II), a atuação do Estado e entes privados (art. 24), a destinação de recursos a instituições sem fins lucrativos (art. 25), entre outros, a mesma não dispõe sobre a internação do usuário de drogas.

O fato de a Lei de Drogas permanecer silente quanto à possibilidade de internação para tratamento do usuário, não significa que esta opção esteja vedada pelo ordenamento jurídico. Ao contrário, conforme a Lei 10.216/2001 - que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, é possível a internação daqueles que através de laudo médico são diagnosticados com transtorno mental, podendo esta ocorrer de três formas: voluntária, involuntária e compulsória.

O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas - CONAD estabelece sua Política Nacional sobre Drogas,por meio da Resolução n. 3 de 27 de outubro de 2005, e, no que tange à recuperação e reinserção social, destaca que: “O Estado deve estimular, garantir e promover ações para que a sociedade (incluindo os usuários, dependentes, familiares e populações específicas) possa assumir com responsabilidade, o tratamento, a recuperação e a reinserção social, apoiada a técnica e financeiramente, de forma descentralizada, pelos órgãos governamentais, nos níveis municipal, estadual e federal, pelas organizações não governamentais e entidades privadas.”. (Resolução nº 3 de 2005).

Portanto, a medida de internação do dependente é juridicamente admitida em situações fundamentadas, nas quais o dependente se encontre em situações de risco de vida, sendo necessário que tenham esgotados todos os recursos distintos do cerceamento da liberdade do mesmo.

Todavia, quando resta identificado o transtorno mental do usuário, tem-se que a sua capacidade de autocontrole da situação encontra-se comprometida. Isso significa que, muitas vezes, o mesmo não possui condições de entender a necessidade de tratamento diverso, nem sequer controle quanto ao tratamento extra-hospitalar, tendo em vista que a possibilidade do mesmo ter recaídas no início é bem maior.

Percebe-se nesses casos, a necessidade de internação do dependente em clínicas ou comunidades terapêuticas, a fim de oferecer o tratamento adequado nas crises de abstinências e evitar o retorno ao uso de drogas que vem invariavelmente aliado à prática de crimes.

Com essas considerações conclamamos o Poder Público e a Sociedade Civil Organizada, a união de forças para a estruturação das casas terapêuticas,como um dos instrumentos postos à disposição do sistema estatal para tratamento desses seres humanos, que estão,com a devida vênia dos que pensam diferentemente, escravizados pelo envolvimento com as drogas, trazendo riscos a sua vida, a integridade da sua família e a ordem pública, tudo isso em razão da DOENÇA da qual estão acometidos.E convenhamos, doente deverá ser tratado por estabelecimentos de saúde e não cadeia!

Neste aspecto, aprendi na magistratura que o Juiz não pode deixar de julgar alegando que não conhece a Lei ou que não existe a Lei (art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Tal adágio é de simples raciocínio: ao juiz cabe solucionar o problema, seja com Lei, seja sem Lei.

Assim, aponto soluções à questão:

De início, a humildade de reconhecer que precisamos trabalhar em rede, dialogando entre os atores do Estado de Direito, independentemente de qual Poder seja, pois aos olhos da sociedade somos todos Estado.

Empós, o reconhecimento que os usuários severos e os usuários-traficantes-dependentes sejam classificados como doentes mentais, para isto o juízo poderá contar com a equipe multidisciplinar, que é posta à sua disposição pelo TJMT, e que não me venham com aquela velha história de que no interior do Estado não existem profissionais, porque já jurisdicionei na cidade de menor IDH do Estado, e lá existia, pelo menos mantida pela prefeitura, uma equipe mínima de saúde, capaz de detectar o problema.

Necessário, também,a assunção pelo Governo do Estado de Mato Grosso das casas terapêuticas, capacitando-as como centro de recuperação de dependentes, devendo a elas inclusive dar aporte financeiro e funcional para seu funcionamento, devendo existir uma casa terapêutica no mínimo em cada região polo do Estado.

Do ponto de vista legal sugiro que o Poder Legislativo assuma a opção política de classificar as comunidades terapêuticas como estabelecimentos de saúde, por meio de Lei a ser devidamente regulamentada pelo Poder Executivo.

Por fim,no que tange ao Judiciário a regulamentação pela Corregedoria Geral de Justiça do TJMT, à possibilidade de que o dinheiro proveniente de transações penais, suspensões condicionais do processo e outros, sejam discricionariamente direcionado ao Fundo Estadual de Combate às Drogas, (e por se tratar de fundo público, não vejo a incidência da vedação posta pela Resolução 154 do CNJ).

Finalizando, para o sucesso da empreitada temos quefazer algo diferente daquilo que os outros fazem ou daquilo que tem sido feito até ao momento. Propor-nos a sacrifícios, que exigem de nós esforço e motivação acrescidos, é algo que tem de ser suportado pelo valor atribuído ao crescimento e desenvolvimento pessoal.

Vamos sair da nossa zona de conforto e fazer as coisas de forma diferente, daquilo que tem sido feito, ou do que os outros têm feito. Por vezes necessitamos de uma boa dose de criatividade e coragem para mudar a vida de pessoas sem vozes, os escravos das drogas.

Raul Lara Leite, é juiz de Direito em Mato Grosso, membro da Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas do TJMT



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